Muitos assistiram ao filme Matrix dos irmãos Andy e Larry Wachowski provavelmente acharam que o filme trata de um tema contemporâneo. Pois, poucos sabem que a própria Matrix foi retirada do universo criado por William Gibson, autor de Neuromancer, um livro escrito em 1983 em uma antiga máquina de escrever. Mais de 25 anos depois de seu lançamento, essa obra, considerada por muitos o ponto inicial do movimento cyberpunk, se tornou uma leitura atemporal e continua influenciando a nossa sociedade.
"Ser e Existir são a Realidade total
A diferença entre Ser e Existir,
É apenas de nomes"
Lao-Tse in Tao Te King
Imagine descobrir um continente tão vasto que suas dimensões talvez
não tenham fim. Imagine um novo mundo com mais recursos que toda a
nossa futura ganância poderia esgotar, com mais oportunidades do que os
empresários poderiam explorar. Um lugar muito particular que se expande
com o crescimento.
Imagine um mundo onde os transgressores não deixam pegadas; onde as
coisas podem ser furtadas um número infinito de vezes e ainda assim
ficarem na posse dos seus donos originais; onde coisas de que você nunca
ouviu falar possuam a história dos seus assuntos pessoais; onde a física é
aquela do pensamento que transcende o mundo material; e, onde cada um é
uma realidade tão verdadeira como as sombras da caverna de Platão.
Tal lugar realmente existe, se lugar for uma palavra apropriada. Ele é
formado por estados de elétrons, microondas, campos magnéticos, pulsos de
luz e pensamento próprio — uma onda na rede dos nossos processamentos
eletrônicos e sistemas de comunicação. Costumava-se chamá-lo de "Esfera
de Dados" até que surgiu, em 1984, o livro Neuromancer, de William
Gibson, que lhe deu o nome evocativo de "Ciberespaço".
Uma data pode marcar o aniversário da publicação de um livro, do
nascimento ou morte de seu autor. Nessas ocasiões, pode-se prestar uma
homenagem — ainda que puramente convencional —, acendendo algumas
velas que, na maioria das vezes, apenas lançam uma fraca luz sobre o
escritor e sua obra.
Em relação ao ano de 1984, no entanto, passa-se algo intrigante. Ele é o
próprio título de um livro — o romance 1984, de George Orwell — que
tornou seu autor mundialmente famoso. E, curiosa coincidência, foi o ano de
publicação de Neuromancer.
Para Orwell, a data não teve significação precisa, ele apenas inverteu os
dois últimos algarismos do ano em que o livro foi concluído: 1948. Que, por
outra curiosa coincidência, foi o ano de nascimento de William Gibson.
Coincidências à parte, William Gibson falou de um mundo conhecido
pela maioria das pessoas como o "local" por onde toda informação,
transferida digital ou eletronicamente, circula ou é armazenada. Todo dia,
milhões de pessoas usam terminais de computadores e cartões de crédito,
dão telefonemas, reservam viagens e acessam informações de uma variedade
sem limites, sem qualquer percepção clara das máquinas digitais que estão
por trás dessas transações.
Nossas vidas financeiras, legais e até mesmo físicas estão cada vez mais
dependentes de realidades das quais temos apenas uma obscura consciência.
Nós confiamos as funções básicas da existência moderna a instituições que
não podemos definir, usando instrumentos de que nunca ouvimos falar.
Quase todos agora suspeitam de que em algum lugar lá fora existem
discos rígidos contendo informações sobre a vida pessoal de cada um —
informação que pode ser ou não correta, mas que seria preferível que
ninguém soubesse — ou pior, sabe-se que pouco pode ser feito para alterar
essa condição.
Mas, se não temos poder sobre esse "lugar" por onde transitam as
informações, é importante sabermos seu conceito, pois como bem escreveu o
pensador espanhol Ortega y Gasset em seu livro Meditações do Quixote,
"sem o conceito não sabemos bem onde começa e onde termina uma coisa.
O conceito nos dá a forma, o sentido das coisas".
Para Gibson, o conceito de ciberespaço é o de "uma alucinação
consensual que pode ser experimentada diariamente pelos usuários através
de softwares especiais... Uma representação gráfica de dados retirados dos
bancos de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade
impensável... Linhas de luz que abrangem o universo não-espacial da mente,
nebulosas e constelações infindáveis de dados... É também realidade virtual".
Essa dimensão criada por computador e à qual o usuário tem acesso
direto, sensorialmente, não é uma criação original de Gibson — nem
pretendeu ser — mas foi ele quem lhe deu forma e nome e, graças às
informações "técnicas" contidas em seu Neuromancer, a Nasa desenvolveu
uma tecnologia de "realidade virtual" proporcionada pelo ciberespaço.
Como podemos perceber, ciberespaço e realidade virtual não são a
mesma coisa. O ciberespaço é algo amplo e bastante complexo, ele cristaliza
a rede atual de linhas de comunicação e bancos de dados num pseudocosmos
colorido, uma "alucinação consensual" através da qual informações e
pessoas circulam como se fossem a mesma coisa. Diga-se, esclarece o
jornalista Julian Dibbel, que; de fato, dados e homens se equivalem no
ciberespaço, um "lugar" onde os cubos, globos e pirâmides de informação
são tão "reais" quanto a própria autoprojeção de uma pessoa. O ciberespaço
é a pátria e terra natal da era da informação — o lugar onde os cidadãos do
futuro estão destinados a habitar. É onde se produz a realidade virtual criada
pelo computador como uma espécie de linguagem para uma comunicação
mais direta e não através de símbolos.
A realidade virtual é um impulso elétrico dentro de um circuito do
computador que se mostra através de simulações do mundo real. Através da
combinação de TV de alta definição, fibras óticas e computadores de última
geração, um usuário do sistema integra-se fisicamente à "realidade"
eletrônica. Seu uso como mecanismo de simulação está sendo largamente
estudado graças às suas inúmeras aplicações, como na arquitetura onde é
usado por engenheiros que simulam operações, caminham pela construção,
mudam a posição de colunas ou portas apenas com o movimento das mãos.
Na Nasa é usado para o conserto de satélites. O astronauta usa um capacete
em que ele pode ver as mesmas coisas que o robô está "vendo" e usando
luvas especiais pode fazer movimentos que serão duplicados pelos robô,
dando ao humano a impressão de estar fazendo pessoalmente o conserto.
Outras aplicações se dão na medicina — com simuladores cirúrgicos — ou
nos videogames que popularizam a realidade virtual, além de centenas de
outras possibilidades, como o sexo virtual.
No Neuromancer, Gibson também se utiliza do sistema simstim —
simulated stimulation — que é uma forma de "entretenimento" futurista, na
qual é possível "plugar" uma mente no corpo de outra pessoa. "Uma
brincadeira da carne", diz Case, o personagem do livro. Na verdade, o
usuário entra em recriações das experiência e sensações de uma pessoa e,
através dessa "estimulação simulada", vivência as experiências e sensações
do outro.
Mas, enquanto Gibson desenhou uma nova realidade, escrevendo sobre
coisas 60 ou 70 anos no futuro, falando de tendências que detectamos hoje,
George Orwell, em 1984, criou um mundo imaginário como uma metáfora
da opressão pública e uma advertência à humanidade.
Ainda que os acontecimentos descritos por Orwell em seu livro não
tenham ocorrido nas datas e da maneira previstas, ele materializava as
preocupações do mundo com os horrores produzidos sob o totalitarismo,
fosse ele o de Hitler ou de Stalin. O romance não pretendeu ser profético,
situando-se antes como um estudo da perda da liberdade em suas últimas
conseqüências. Mas, o mundo de loucura e opressão mostrado no livro é
impressionante na medida em que é perfeitamente possível. O controle da
mente humana e da verdade histórica pelo Estado são realidades do século
XX.
Nesse futuro de pesadelo, 1984 mostra um mundo onde os sentimentos
são vigiados e proibidos. "Se você quer uma imagem do futuro", diz o
inquisidor ao personagem, "imagine uma bota esmagando um rosto
humano... para sempre". O que interessa ao Estado aqui, lembra o jornalista
Ulisses Moulines, não é a mera submissão física, mas a entrega total da
pessoa, em corpo e alma, a seus carrascos. A metáfora da bota triturando o
rosto não deve ser entendida e limitada ao seu sentido físico. Trata-se
também, e sobretudo, de esmagar o pensamento individual. O método para
alcançar esse objetivo é uma combinação de procedimentos físicos,
fisiológicos e psicológicos, mas o que mais conta são os últimos. É claro que
os torturadores fazem uso da violência física em grande escala: são
generosos em bordoadas, pontapés nas partes genitais, fome, exposição a
ruídos e odores insuportáveis, aplicação de choques elétricos e humilhações
de todos os tipos.
Mas este é apenas o início do processo de destruição da personalidade
rebelde. Esses usos, típicos do fascismo corrente, são complementados com
a persuasão "dialética" da vítima, por meio da conversação direta e pessoal
com o Intelectual-Policial.
As características essenciais desta segunda fase, pressentidas por Arthur
Koestler em O Zero e o Infinito, aparecem reveladas na parte final do livro.
Já não se trata aqui de infligir dores insuportáveis à superfície do corpo ou às
vísceras, nem sequer de maltratar o sistema nervoso com eletrochoques e
drogas.
Trata-se de chegar ao mais profundo, ao mais íntimo do intelecto, às
convicções mais arraigadas, aos sentimentos mais autênticos, e de dar-lhes
uma volta, como a um parafuso. Trata-se de fazer passar da convicção de
que dois e dois são quatro, independentemente de quem o diga ou de quando
o diga, para a admissão plena de que podem ser cinco, ou três, ou qualquer
outra coisa que ocorra ao Estado, no momento em que lhe ocorra.
Segundo Orwell, o instrumento para conseguir essa transição é,
fundamentalmente, a palavra. Por meio do uso da linguagem, viola-se a
própria linguagem e, com ela, o pensamento. "As palavras são, ao mesmo
tempo, indispensáveis e fatais", dizia Aldous Huxley. "As palavras são as
drogas mais poderosas que a humanidade conhece", dizia Rudyard Kipling.
Como todo o resto, da energia atômica ao curare e à morfina, tudo depende
da dose e da oportunidade para fazer de determinada coisa extraordinário
benefício ou um fator de destruição.
Os profetas da comunicação estão provavelmente certos quando dizem
que os conceitos tradicionais de capital e trabalho serão substituídos por
aqueles do conhecimento e da informação. A mercadoria do futuro estará
contida num disquete, ou num vídeo, mas isso não muda muita coisa do
problema, como bem salienta o escritor e jornalista Luiz Carlos Lisboa em
um excelente texto sobre as mitologias da comunicação.
O videotexto, o videocassete, os microcomputadores, os satélites
domésticos, as fibras óticas não podem ser compreendidos apenas do ponto
de vista técnico — e é inteiramente inútil denunciar a tecnologia. "Quando
existem tantas imagens disponíveis num Cosmo inundado de simbolismo",
diz Max Lerner, professor da Universidade de Notre-Dame, "o que conta
como poder é a seleção dessas imagens".
E aí surge a outra face do problema: a manipulação da nova mercadoria.
Aquele poder de selecionar é o que faz, mais do que nunca, o poder no
mundo contemporâneo.
Por isso nos detemos um pouco — em forma de contraponto — nas
colocações de Orwell, já que nas projeções de futuro de Gibson — a partir
da constatação de que os veículos de comunicação despejam toneladas de
dados sobre os nossos sentidos, diariamente — as gigantescas corporações
multinacionais têm tanto ou mais poder do que os governos, manifestado
justamente através do controle do fluxo de informações, produtos e serviços.
Enquanto que para Orwell o poder é exercido pelo Estado através da
figura única do Grande Irmão — "Quem controla o passado, controla o
futuro", diz um dos slogans do Estado, "e quem controla o presente, controla
o passado" — é o mundo dos parafusos perfeitos — para a nova realidade de
Gibson o futuro não permite o controlador único.
Ele sabe que desde aquele momento em março de 1876 que um tal de
senhor Watson encontrou o senhor Graham Bell em um lugar — que Gibson
chamou de ciberespaço — o poder passou progressivamente a ser de quem
controla o fluxo das informações.
Com o avanço da tecnologia de processamento de informações e
comunicações em passo muitas vezes mais rápido do que a sociedade pode
assimilá-lo, poucos notaram o emergente domínio existente, apesar do fato
de que a grane maioria de nós usa suas fontes diariamente. A imaginação
mais fecunda, afirma Lisboa, é impotente para conceber os desdobramentos
possíveis do mundo das comunicações nesse futuro que se aproxima.
Prever com exatidão está além de qualquer possibilidade humana, é
claro, mas divagar sobre tendências conhecidas leva a uma visão aproximada
do que será esse amanhã fantástico. E divagar, fantasiar, aludir sempre foram
recursos de que se valeram os que quiseram falar do imponderável, sem as
peias do formalismo, sem os embaraços da sisudez e o estorvo do
academicismo. O prazer da fantasia consiste nessa liberdade de que se
desfruta na criação, onde uma disciplina muito especial substitui as regras,
os conceitos e as imposições culturais.
Os trabalhos sistemáticos e as exposições rigorosas têm seu lugar no
mundo, mas é na intuição — no espaço entre dois pensamentos racionais —
que está o sal da terra, ou como nos ensina Lisboa, a fonte que abastece os
mananciais da inteligência, e que de algum modo justifica as academias, as
bibliotecas e todos os demais recursos pelos quais o homem procura
acumular os relâmpagos de sabedoria e o material precioso que vai
encontrando pelo caminho.
Alguns momentos de contato com essa realidade — e nada melhor que
uma crise para desatrelar a criatividade — são suficientes para abastecer o
espírito para uma longa caminhada pela vida, com a fruição plena do
trabalho, da beleza e do milagre que é tudo isso.
William Gibson, ao lado de Bruce Sterling, Lewis Shiner, John Shirley,
Rudy Rucker, detectou, no início dos anos 80, uma enorme crise na Ficção
Científica. Essa crise, segundo eles, motivou-os justamente a provocarem
uma revisão das visões de futuro realizadas até então, estabelecendo assim o
início de uma nova tendência no gênero: o Movimento Cyberpunk.
Se em 1984 detectamos a preocupação de Orwell com o uso da
linguagem para fins políticos, com o Neuromancer, Gibson pensava antes
em criticar e combater deliberadamente aspectos da Ficção Científica que
considerava reacionários, fora de moda e entediantes.
Zeitgeist é a palavra com que os alemães designam "o espírito da época",
aquilo que vigora com força inexplicável em determinado lugar e em certo
período. A consagração de conceitos, a proibição de idéias, a tendência para
certas conclusões, a cegueira para coisas que serão visíveis séculos depois ou
foram largamente entendidas séculos antes: é o espírito do Zeitgeist.
Nossa capacidade de ver e escutar depende desses valores, das suas
imposições e rejeições. Escritores, artistas, inventores e iluminados
disseram, no passado, que o mundo não estava preparado para as inovações
que lhe traziam. Essa é uma forma de dizer que o número de pessoas capaz
de escutar determinada coisa é muito pequeno, o que torna seu enunciado
inútil ou até mesmo perigoso. Não existe tarefa mais difícil que caminhar
contra as tendências e imposições de uma época.
Tanto para Gibson como para Sterling, Shiner, Shirley e Rucker — ou
como eles se batizaram, "O Movimento", sendo que a expressão
"Cyberpunk" apareceria depois, cunhada por Gardner Dezois, editor-chefe
da Isaac Asimov Magazine americana — toda crítica e combate que faziam
era para demonstrar seu descontentamento com a Ficção Científica que se
produzia na época e que, para eles, parecia incapaz de evoluir com as cada
vez maiores e mais rápidas mudanças na tecnologia e na sociedade.
Verdadeiro Zeitgeist.
Neuromancer levanta, sem dúvida, algumas questões e especulações
sobre o caminho da sociedade de amanhã e o seu funcionamento. Mas,
fundamentalmente, possibilita-nos ver que a Ciência, como bem disse a
professora Verônica Rapp, do Centro de Medicina Nuclear da USP, está
novamente no limiar de uma série de transformações, cujas conseqüências
podem ter um alcance ainda maior do que aquelas que emergiram das
revoluções de Copérnico, Newton, Darwin e Freud.
Questões relativas à consciência e à percepção, à realidade e conceitos,
experiências subjetivas e transpessoais, as raízes dos postulados dos valores
fundamentais e assuntos correlatos constituem hoje um grupo de
preocupações que, tal e qual aquelas relativas ao universo físico, começam a
se deslocar da esfera das investigações teológicas e filosóficas para o
domínio da pesquisa empírica.
Existe uma relação recíproca, nos lembra a professora Verônica, entre a
pesquisa científica e a sociedade em que ela emerge. Os conhecimentos
científicos geram aplicações tecnológicas que, por sua vez, modificam o
ambiente cultural.
O mito de Prometeu ilustra magistralmente este aspecto da Ciência. O
audacioso Prometeu roubou o fogo dos deuses e, dessa maneira, deu ao
homem o controle sobre o seu próprio destino. Epimeteu, seu irmão,
deleitava-se em brincar com aquelas descobertas, inconsciente das suas
conseqüências. Irados com o roubo, os deuses vingaram-se: enviaram a
Epimeteu uma esposa, Pandora; ela possuía uma caixa que, uma vez aberta,
derramava sobre a humanidade doenças e aflições; somente a Esperança
permanecia na caixa, a fim de preservar o equilíbrio mental do homem
diante de seu novo infortúnio.
Segundo Conant, a ciência clássica assenta sobre os seguintes axiomas:
1- a razão é o instrumento supremo da humanidade; 2- o universo é
basicamente físico e ordenado; 3- essa ordem pode ser descoberta pela
ciência e definida objetivamente; 4- a observação e a experimentação são os
únicos meios válidos para a descoberta; 5- os conhecimentos adquiridos pelo
uso da razão libertarão a humanidade da ignorância e a conduzirão para um
futuro melhor.
Tais axiomas, no entanto, frente aos recentes progressos em diversas
fronteiras da indagação científica, tornaram-se menos seguros. No século
XX, diz Frítjof Capra em seu livro O Ponto de Mutação, a física passou por
várias revoluções conceituais que revelam claramente as limitações da visão
de mundo mecanicista. O universo deixou de ser visto como uma máquina,
composta por uma profusão de objetos distintos para apresentar-se agora
como um todo harmonioso e indivisível, uma rede de relações dinâmicas que
incluem o observador humano e sua consciência de em modo essencial.
Uma das principais lições que os físicos tiveram que aprender neste
século foi o fato de que todos os conceitos e teoria que usamos para
descrever a natureza são limitados. Em virtude das limitações essenciais da
mente racional, temos de aceitar o fato de que, como disse o físico alemão
Werner Heisenberg, "toda palavra e todo conceito, por mais claros que
possam parecer, têm apenas uma limitada gama de aplicabilidade". As
teorias científicas não estarão nunca aptas a fornecer uma descrição
completa e definitiva da realidade. Serão sempre aproximações da
verdadeira natureza das coisas. Em termos claros: os cientistas não lidam
com a verdade; eles lidam com descrições da realidade limitadas e
aproximadas.
No início do século, continua Capra, quando os físicos estenderam o
alcance de suas investigações aos domínios dos fenômenos atômicos e
subatômicos, tomaram consciência das limitações de suas idéias clássicas e
tiveram que rever radicalmente muitos de seus conceitos básicos acerca da
realidade. A experiência de terem que questionar a própria base de sua
estrutura conceitual e de se verem forçados a aceitar profundas modificações
de suas mais caras idéias foi marcante e, freqüentemente, dolorosa para esses
cientistas, sobretudo durante as primeiras três décadas do século, mas foi
recompensada por insights profundos da natureza da matéria e da mente
humana.
A partir das mudanças revolucionárias em nossos conceitos de realidade
ocasionadas pela física moderna, uma nova e consistente visão de mundo
começa a surgir. Essa visão não é compartilhada por toda a comunidade
científica, mas está sendo discutida e elaborada por muitos físicos eminentes
cujo interesse em sua ciência supera os aspectos de suas pesquisas. Esses
cientistas se mostram profundamente interessados nas implicações
filosóficas da física moderna e estão tentando, com espírito aberto, melhorar
sua compreensão da natureza da realidade.
Segundo Capra, a visão de mundo que está surgindo a partir da física
moderna, em contraste com a concepção mecanicista cartesiana, pode
caracterizar-se por palavras como orgânica, holística e ecológica. Pode ser
também denominada visão sistemática, no sentido da teoria geral dos
sistemas, que, em essência, é uma tentativa de integrar, em termos racionais,
os diferentes conhecimentos obtidos nos vários ramos de pesquisa. Ela
procura ser, ao mesmo tempo, holística e empírica. Sua proposição básica é
que as leis e os princípios que governam os sistemas relacionados com uma
área do conhecimento provavelmente são também importantes para outra
área do conhecimento.
O universo deixa de ser visto como uma máquina, composta de uma
infinidade de objetos, para ser descrito como um todo dinâmico, indivisível,
cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser
entendidas como modelos de um processo cósmico.
Na alegoria da caverna, Platão dramatiza a ascese do conhecimento.
Descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os
reflexos de simulacros que — sem que ele possa ver — são transportados à
frente de um fogo artificial. Como sempre viu essas projeções de artefatos,
toma-os por realidade e permanece iludido. A situação desmonta-se e
inverte-se desde o momento que o prisioneiro se liberta: reconhece o engano
em que permanecera, descobre a "encenação" que até então o enganara e,
depois de galgar a rampa que conduz à saída da caverna, pode lá fora
começar a contemplar a verdadeira realidade. Aos poucos, ele, que fora
habituado a sombra, vai podendo olhar o mundo real: primeiro através de
reflexos — como o do céu estrelado refletindo na superfície das águas
tranqüilas —, até finalmente ter condições para olhar diretamente para o Sol,
fonte de toda luz e de toda realidade.
Essa alegoria de múltipla dimensão pode ser vista tanto como fabulação
da ascese religiosa, como da filosófica e da científica, além de guardar uma
evidente conotação política, que o contexto da República não permite
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negligenciar. Mas fundamentalmente possibilita a discussão do conceito de
realidade e do que é verdadeiro.
Os gregos antigos não tinham uma palavra para "verdade". Quando
queriam designar alguma coisa manifesta, evidente, perceptível, usavam a
palavra alethes. Sua percepção penetrante da realidade ensinava-lhes
algumas lições surpreendentes, inclusive essa da verdade não ser estática,
algo que permanece no tempo, mas uma descoberta que pode ser feita
momento a momento.
Chamar alguma coisa de "verdade" eqüivale atribuir a essa coisa um
rigor dogmático, uma rigidez que conduz à esclerose. Os antigos gregos
sabiam o que estavam fazendo quando se referiam apenas ao manifesto, ao
evidente, ao aberto, ao presente.
Tomar a realidade simples de cada dia e desmontá-la peça por peça não
implica um exercício racional e metódico, afirma Luiz Carlos Lisboa. O que
chamam de racionalidade e método costumam ser, freqüentemente,
elaborados rosários de palavras, hábeis montagens que projetam seriedade
graças as complexidades que ostentam. O envoltório para ser compreendido.
"O real é nossa mente comum", dizem os patriarcas do Zen. Soa
estranhamente aos nossos ouvidos condicionados à idéia de que tudo está
contido na simplicidade do cotidiano. Costumamos até invalidar todo
conceito novo, sem maiores exames, atribuindo veredictos que encerram
uma discussão e fecham portas.
A naturalidade com que a vida mistura os ingredientes do cotidiano
simples com o fantástico mais arrebatados permite que o comum das pessoas
passe pela revolução que opera sob seus olhos a todo instante sem a maior
comoção. Não é bem, como dizia Oscar Wilde, que "a vida imita a arte", mas
que a arte capaz de imitar bem a vida se torna a mais eficaz, sendo
considerada a mais competente.
A Ficção Científica é, muitas vezes, um exercício, um esforço para se
libertar de todos os convencionalismos, para imaginar mudanças em nossa
sociedade, sacudir os conceitos estabelecidos, inventar situações absurdas
para depois jogar com elas, analisá-las em termos do cotidiano, situar o
homem e seus problemas por ângulos inusitados e atualmente impossíveis.
Como disse o escritor russo Alexander Kasantsev: "o homem é dotado de
imaginação e capaz de conceber coisas que não existem. Por seu
pensamento, pode conquistar o tempo e o espaço, explorar mundos
desconhecidos, fazer avançar as fronteiras da Ciência. Porque não pode
haver ciência sem ficção."
A Ficção Científica é, pois, um avanço de imagens futuristas e
possibilidades alternativas, um repositório literário das esperanças, receios e
conjecturas de homens e mulheres relativamente à condição evolutiva da
humanidade e, por conseguinte, um inestimável campo de treinamento para
seus leitores na antecipação e criação de coisas vindouras.
Sílvio Alexandre
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